Publicado em 29 de junho, 2018 | por Centro Paz e Amor
0Liberdade, igualdade e fraternidade
“A liberdade é filha da fraternidade e da igualdade. Os homens que vivam como irmãos, com direitos iguais, animados do sentimento de benevolência recíproca, praticarão entre si a justiça, não procurarão causar danos uns aos outros e nada, por conseguinte, terão que temer uns dos outros. A liberdade nenhum perigo oferecerá, porque ninguém pensará em abusar dela em prejuízo de seus semelhantes…” – Allan Kardec
A fraternidade, na rigorosa acepção do termo, resume todos os deveres dos homens, uns para com os outros. Significa: devotamento, abnegação, tolerância, benevolência, indulgência. Ë, por excelência, a caridade evangélica e a aplicação da máxima: “Proceder para com os outros, como quereríamos que os outros procedessem para conosco.” O oposto do egoísmo.
A fraternidade diz: “Um por todos e todos por um.” O egoísmo diz: “Cada um por si.” Sendo estas duas qualidades a negação uma da outra, tão impossível é que um egoísta proceda fraternalmente para com os seus semelhantes, quanto a um avarento ser generoso, quanto a um indivíduo de pequena estatura atingir a de um outro alto. Ora, sendo o egoísmo a chaga dominante da sociedade, enquanto ele reinar soberanamente, impossível será o reinado da fraternidade verdadeira. Cada um a quererá em seu proveito; não quererá, porém, praticá-la em proveito dos outros, ou, se o fizer, será depois de se certificar de que não perderá coisa alguma.
Considerada do ponto de vista da sua importância para a realização da felicidade social, a fraternidade está na primeira linha: é a base. Sem ela, não poderiam existir a igualdade, nem a liberdade séria. A igualdade decorre da fraternidade e a liberdade é consequência das duas outras.
Com efeito, suponhamos uma sociedade de homens bastante desinteressados, bastante bons e benévolos para viverem fraternalmente, sem haver entre eles nem privilégios, nem direitos excepcionais, pois de outro modo não haveria fraternidade. Tratar a alguém de irmão é tratá-lo de igual para igual; é querer quem assim o trate, para ele, o que para si próprio quereria. Num povo de irmãos, a igualdade será a consequência de seus sentimentos, da maneira de procederem, e se estabelecerá pela força mesma das coisas. Qual, porém, o inimigo da igualdade? O orgulho, que faz queira o homem ter em toda parte a primazia e o domínio, que vive de privilégios e exceções, poderá suportar a igualdade social, mas não a fundará nunca e na primeira ocasião a desmantelará. Ora, sendo também o orgulho uma das chagas da sociedade, enquanto não for banido, oporá obstáculo à verdadeira igualdade.
A liberdade, dissemo-lo, é filha da fraternidade e da igualdade. Falamos da liberdade legal e não da liberdade natural, que, de direito, é imprescritível para toda criatura humana, desde o selvagem até o civilizado. Os homens que vivam como irmãos, com direitos iguais, animados do sentimento de benevolência recíproca, praticarão entre si a justiça, não procurarão causar danos uns aos outros e nada, por conseguinte, terão que temer uns dos outros. A liberdade nenhum perigo oferecerá, porque ninguém pensará em abusar dela em prejuízo de seus semelhantes. Mas, como poderiam o egoísmo, que tudo quer para si, e o orgulho, que incessantemente quer dominar, dar a mão à liberdade que os destronaria? O egoísmo e o orgulho são, pois, os inimigos da liberdade, como o são da igualdade e da fraternidade.
A liberdade pressupõe confiança mútua. Ora, não pode haver confiança entre pessoas dominadas pelo sentimento exclusivista da personalidade. Não podendo cada uma satisfazer-se a si própria senão à custa de outrem, todas estarão constantemente em guarda umas contra as outras. Sempre receosas de perderem o a que chamam seus direitos, a dominação constitui a condição mesma da existência de todas, pelo que armarão continuamente ciladas à liberdade e a cercearão quanto puderem.
Aqueles três princípios são, pois, conforme acima dissemos, solidários entre si e se prestam mútuo apoio; sem a reunião deles o edifício social não estaria completo. O da fraternidade não pode ser praticado em toda a pureza, com exclusão dos dois outros, porquanto, sem a igualdade e a liberdade, não há verdadeira fraternidade. A liberdade sem a fraternidade é rédea solta a todas as más paixões, que desde então ficam sem freio; com a fraternidade, o homem nenhum mau uso faz da sua liberdade: é a ordem; sem a fraternidade, usa da liberdade para dar curso a todas as suas torpezas: é a anarquia, a licença. Por isso é que as nações mais livres se veem obrigadas a criar restrições à liberdade.
A igualdade, sem a fraternidade, conduz aos mesmos resultados, visto que a igualdade reclama a liberdade; sob o pretexto de igualdade, o pequeno rebaixa o grande, para lhe tomar o lugar, e se torna tirano por sua vez; tudo se reduz a um deslocamento de despotismo.
Seguir-se-á daí que, enquanto os homens não se acharem imbuídos do sentimento de fraternidade, será necessário tê-los em servidão? Dar-se-á sejam inaptas as instituições fundadas sobre os princípios de igualdade e de liberdade? Semelhante opinião fora mais que errônea; seria absurda.
Ninguém espera que uma criança se ache com o seu crescimento completo para lhe ensinar a andar. Quem, ao demais, os tem sob tutela? Serão homens de ideias elevadas e generosas, guiados pelo amor do progresso? Serão homens que se aproveitem da submissão dos seus inferiores para lhes desenvolver o senso moral e elevá-los pouco a pouco à condição de homens livres? Não; são, em sua maioria, homens ciosos do seu poder, a cuja ambição e cupidez outros homens servem de instrumentos mais inteligentes do que animais e que, então, em vez de emancipá-los, os conservam, por todo o tempo que for possível, subjugados e na ignorância.
Mas, esta ordem de coisas muda de si mesma, pelo poder irresistível do progresso. A reação é não raro violenta e tanto mais terrível, enquanto o sentimento da fraternidade, imprudentemente sufocado, não logra interpor o seu poder moderador; a luta se empenha entre os que querem tomar e os que querem reter; daí um conflito que se prolonga às vezes por séculos. Afinal, um equilíbrio fictício se estabelece; há qualquer coisa de melhor. Sente-se, porém, que as bases sociais não estão sólidas; a cada passo o solo treme, por isso que ainda não reinam a liberdade e a igualdade, sob a égide da fraternidade, porque o orgulho e o egoísmo continuam empenhados em fazer se malogrem os esforços dos homens de bem.
Todos vós que sonhais com essa idade de ouro para a Humanidade trabalhai, antes de tudo, na construção da base do edifício, sem pensardes em lhe colocar a cúpula; ponde-lhe nas primeiras fiadas a fraternidade na sua mais pura acepção. Mas, para isso, não basta decretá-la e inscrevê-la numa bandeira; faz-se mister que ela esteja no coração dos homens e não se muda o coração dos homens por meio de ordenações. Do mesmo modo que para fazer que um campo frutifique, é necessário se lhe arranquem os pedrouços e os tocos, aqui também é preciso trabalhar sem descanso por extirpar o vírus do orgulho e do egoísmo, pois que aí se encontra a causa de todo o mal, o obstáculo real ao reinado do bem. Eliminai das leis, das instituições, das religiões, da educação até os últimos vestígios dos tempos de barbárie e de privilégios, bem como todas as causas que alimentam e desenvolvem esses eternos obstáculos ao verdadeiro progresso, os quais, por assim dizer, bebemos com o leite e aspiramos por todos os poros na atmosfera social. Somente então os homens compreenderão os deveres e os benefícios da fraternidade e também se firmarão por si mesmos, sem abalos, nem perigos, os princípios complementares, os da igualdade e da liberdade.
Será possível a destruição do orgulho e do egoísmo? Responderemos alto e terminantemente: SIM. Do contrário, forçoso seria determinar um ponto de parada ao progresso da Humanidade. Que o homem cresce em inteligência, é fato incontestável; terá ele chegado ao ponto culminante, além do qual não possa ir? Quem ousaria sustentar tão absurda tese? Progride ele em moralidade? Para responder a esta questão, basta se comparem as épocas de um mesmo país. Por que teria ele atingido o limite do progresso moral e não o do progresso intelectual? Sua aspiração por uma melhor ordem de coisas é indício da possibilidade de alcançá-la. Aos que são progressistas cabe acelerar esse movimento por meio do estudo e da utilização dos meios mais eficientes. (Do livro “Obras Póstumas”, 38, Allan Kardec)