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Publicado em 13 de junho, 2021 | por Centro Paz e Amor

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A Família no Século 21: Ordem ou Desordem?

Site:  Federação Espírita do Rio Grande do Sul
Jerri Roberto Almeida  –  Autor dos livros: Filosofia da Convivência, e O Desafio da Felicidade.

Família em movimento

Veronese, pintor renascentista italiano, em uma de suas obras retratou Adão e Eva no pátio de sua casa no meio de seus animais e, de seus filhos Caim e Abel. Um deles mama na mãe, enquanto o outro, brinca tranqüilamente no chão. Adão aparece escondido atrás de uma árvore observando sua família, ao que parece, sem desejar perturbá-la. A cena, inspirada na mitologia hebraica, sugere um olhar permanente sobre as relações afetivas do universo familiar, independentemente da época em que estejamos.

Apesar de tudo o que se tem escrito sobre família, ela permanece uma instituição desafiadora e, igualmente, maravilhosa! Aristóteles definia-a como uma comunidade (oikia) que serviria de base à vida na cidade, Para filósofos como Rousseau, a mais antiga de todas as sociedades e a única natural seria a família. Essa afirmação encontra ressonância em pesquisas que afirmam que a constituição da família, certamente no sentido de vida em grupos restritos, teve início a cerca de quatro milhões de anos, ainda junto aos ancestrais da espécie humana.

A família, na medida em que associa um fato da natureza, inserido nas leis da reprodução biológica, com os costumes de época, pertencentes ao universo cultural, passou a ser considerada uma instituição essencialmente humana, um fenômeno universal presente em todos os tipos de sociedades. Freud, seguramente a compreendia também como “grupo natural” onde a pessoa desenvolve o sentido de pertencimento, pois é nela que se é gerado e que se recebe a noção de parentesco necessário, entre outros fatores, a construção da própria identidade individual.

O grupo familiar continua, mesmo com suas diversas mudanças e configurações ao longo do tempo e da cultura, um ponto de referência insubstituível na perspectiva psicológica da proteção, da educação e espiritualização do ser. Considera-se, inclusive a família, uma espécie de âncora das condições que promovem o desenvolvimento e o progresso na Terra. Sempre existiram, no entanto, os profetas do negativismo, vez por outra, sinalizando o fim da família. Ficou conhecido o livro de Devid Cooper, A morte da família, publicado na década de 70, do século vinte, onde questões como os anticonceptivos e debates sobre o divórcio, pareciam apontar para um esgotamento dos vínculos familiares.

Recentemente o filósofo francês Charles Melman, renovou o antigo discurso de que “a instituição familiar está desaparecendo, e as conseqüências são imprevisíveis”. Para a psicanalista Elisabeth Roudinesco, todas as pesquisas sociológicas demonstram o contrário, ou seja, que a família atualmente é “… um valor seguro ao qual ninguém quer renunciar. Ela é amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições.” [iv] Parece contraditório? Não! O que observamos na atualidade, de forma geral, é uma dinâmica familiar conflitiva, sofrendo os reveses da cultura do descartável, da intolerância e do individualismo, buscando no meio da turbulência um natural ponto de equilíbrio.

A família é uma instituição inquietante, em constante movimento, e nem por isso ela deixou de existir! Na verdade, presenciamos um processo de revisão dos vínculos e das condutas que se originam no ambiente doméstico e que se projetam na sociedade. Tudo isso nos faz pensar sobre o papel de cada um na construção de um ambiente familiar saudável, o que não implica na ausência de crises, mas numa pertinente reflexão sobre os papéis de cada um no universo da conjugalidade e da maternidade/paternidade.

Allan Kardec, realizando uma verdadeira incursão sobre o significado da existência e da vida, ofereceu valiosos conhecimentos sobre a dimensão espiritual das relações familiares. O espírito humano renasce num ambiente familiar próprio para suas necessidades e experiências de amadurecimento psicológico. Os elos de afinidade, simpatia, repulsão ou antipatia, ou mesmo de indiferença, que fazem parte do universo de nossas experiências existenciais, formam os ingredientes silenciosos que compõem, associados a outros fatores, o contexto conflitivo ou não, de muitas famílias.

Na singularidade de cada grupo familiar há, em nível mais profundo, uma história espiritual rica de eventos que compõem quadros, na atual existência, de esperanças, ressentimentos, solidariedades, aspirações, sacrifícios, devotamentos ou, ainda, indiferenças. Na intimidade familiar cada um expressa o que realmente é, manifestando os conteúdos e ambivalências, absorvidos no passado espiritual e no presente existencial, configurando, assim, a personalidade, o caráter e o temperamento de que é portador.

Sabemos que a convivência como um todo, recebe interferências externas com as quais está constantemente interagindo. A cultura televisiva é uma delas e de grande impacto sobre o conjunto da sociedade. A televisão está dentro dos lares 24 horas por dia, o ano inteiro, construindo representações no imaginário humano. Os conteúdos adentram aos lares quase sem filtros, sem análise, sem seleção de valor cultural, possibilitando a geração de novos comportamentos e novas ilusões. Dificilmente pais e filhos analisam de forma crítica informações e mensagens de programas e filmes, na maioria das vezes, assumem postura passivas diante do totalitarismo da mídia.

O surgimento de novas tecnologias de informação e lazer, a exemplo da internet, são vistas por muitos como instrumentos de isolamento entre os membros da família, uma vez que muitos preferem os relacionamentos virtuais e as longas horas de navegação na rede, do que dispensarem momentos para um bom bate-papo em família. Não se pode, como é comum, ir contra o progresso tecnológico ou culpá-lo simplesmente pelos desajustes familiares. O progresso deve ser um aliado, pois é uma Lei Natural, como estuda Kardec na 3ª. Parte de O Livro dos Espíritos. O progresso material, em sentido amplo deve, tanto quanto possível, estar a serviço do desenvolvimento ético do espírito, ensejando-lhe novos recursos de crescimento psicológico, intelectual e moral.

Acolhimento e segurança

O núcleo familiar, seja qual for sua configuração, possui um papel admirável na obra do progresso espiritual, educacional e cultural de todos os seus membros. Os pais, mesmo que não gostem de seus papéis, são responsáveis diretos por seus filhos, pelas decisões que assumem ou que deixam de assumir, no território da proteção e da educação profunda. Por educação profunda compreendemos não somente a ação de “formatar” hábitos básicos, embora importantes, como: “arrumar a cama ao levantar”, mas associamos, nesse conceito, todos os esforços dos pais para o desenvolvimento pleno de seus filhos, sobretudo, como cultivadores do amor e de espiritualidade.

Pesquisas atuais apontam que o relaxamento com os laços familiares, cujos efeitos já alertava o Espiritismo seria um retorno ao egoísmo, gera doenças e promove insegurança afetiva. A constatação é da cientista da Universidade da Califórnia (EUA), Rena Repetti, após reunir mais de 500 estudos sobre a relação entre família e saúde. A pesquisadora constatou que “crianças que crescem num ambiente de acolhimento e segurança emocional em geral são providas de maior senso de integração social e mais capazes de regular o próprio comportamento para manter a saúde do corpo e da mente…”. As pesquisas apontam também para o que, de certa forma já sabíamos, ou seja: “viver em famílias cujo cotidiano é marcado por episódios de raiva e agressões tornam crianças, adolescentes e adultos vulneráveis a uma ampla gama de males físicos e mentais.” Uma família bem resolvida se configura num espaço relacional onde as emoções são trabalhadas positivamente, problemas são enfrentados com diálogo e responsabilidade conforme os papéis assumidos. Dessa forma, as relações familiares objetivam atuar, quando bem conduzidas, para diminuir ou anular os comportamentos de riscos como o caso da dependência química de remédios e demais drogas. Sabemos, à luz do Espiritismo que o Ser espiritual renasce no corpo físico, muitas vezes, com certas predisposições para determinados comportamentos, seja no que tange ao uso de substâncias causadoras de dependências, ou a certas tendências de rebeldia e agressividade. Muitas vezes ainda, esses componentes estão todos misturados na herança profunda, de si mesmo, que o espírito traz para a existência atual.

Como toda instituição, cabe a família realizar “investimentos” para a melhoria da convivência e manutenção da felicidade. A valorização e o fortalecimento dos vínculos é um desses investimentos indispensáveis. Os vínculos podem ser fortalecidos através do compartilhar das afinidades e das responsabilidades, tanto nos momentos de lazer em conjunto, como naqueles em que se demonstra: cuidado, zelo, incentivo, fidelidade, compreensão…, tanto na relação conjugal como entre pais e filhos.

Nesse universo de relações é fundamental identificarmos o que é realmente “urgente”, o que estamos privilegiando, e o que se está negligenciando, o que devemos investir agora e o que poderá ser feito mais tarde. No filme Coisas de Família, o pai se questiona: “Eu não tenho tempo para o Nick!”. O filme retrata dramas contemporâneos de três famílias residindo na mesma rua, vivendo fatos comuns do cotidiano como os conflitos conjugais e os dilemas na educação dos filhos. A contemporaneidade nos legou, entre tantas coisas, o desafio de sabermos administrar o tempo, tendo-se em vistas o ritmo acelerado dos compromissos de toda ordem. Se fazer opções é próprio da condição humana, optar por estar mais presente na família, compartilhando um pouco mais da vida dos outros membros, é uma decisão que contribuiria para evitar múltiplas situações desagradáveis.

Aonde queremos chegar?

Apesar de ser palco dos conflitos existenciais do espírito em evolução, a família permite o estreitamento dos laços sociais, criando condições favoráveis ao progresso dos sentimentos, além de permitir as experiências necessárias ao exercício do discernimento. Em sentido profundo, a experiência familiar enseja um valioso mecanismo de autoconhecimento, desafiando a criatura humana a um intenso processo de sensibilização afetiva, no sentido de cultivar o equilíbrio e a sensatez.

Quando a menina Alice, da história “Alice no país da maravilhas”, chega na floresta desconhecida e após algumas horas de caminhada, avista próximo a um cruzamento, um tronco de árvore com setas indicando várias direções. Sem saber que direção seguir, ela pergunta a um gato sorridente, deitado na árvore, o caminho da saída. O gato lhe indaga: para aonde você quer ir? Para qualquer lugar, responde a menina. O felino, diante de tal constatação, lhe sugere: para quem não sabe aonde quer chegar, qualquer caminho serve!

Muitos casais e muitos pais parecem, na atualidade, viverem o dilema de Alice: não sabem aonde querem chegar. Num mundo onde os valores se fragmentam, muitos questionam a própria identidade da família. Pais perdidos e sem referenciais, não sabem que caminho adotar na educação de seus filhos, Vêem-se no dilema ou na ambivalência cultural que ora preconiza a imposição de limites, e ora defende a autonomia, a liberdade.

Casamentos e uniões conjugais se edificam, cada vez mais, sem um planejamento mínimo que seja, conduzidos simplesmente pelos impulsos e paixões. Tais relacionamentos tornam-se, por sua própria configuração, vulneráveis ainda mais aos conflitos decorrentes do temperamento e fraquezas de cada um. A instabilidade vivenciada pela família atual, parece não deixar dúvidas quanto à necessidade de repensar a precipitação e a falta de amadurecimento afetivo dessas uniões.

A incerteza dessas relações, por outro lado, pode funcionar como experiências para o processo de amadurecimento psicológico do espírito reencarnado, no exercício de suas decisões. Sabemos que o maior impacto dessa imaturidade do casal, se dá sobre os filhos. O fracasso do casamento termina por impor aos filhos uma realidade, no geral, traumática por desorganizar e desumanizar seu universo afetivo.

Oportunamente, um amigo oficial de justiça, contava-me o drama de um jovem drogatizado. O casal separou-se, a mãe passou a se prostituir em outra cidade, e o pai combinando o uso de remédios controlados com álcool. Para o adolescente, que morava com o pai, a realidade era somente uma, terrível e perturbadora. Para fugir daquele mundo familiar totalmente desequilibrado, se é que podemos chamar isso de família, o adolescente refugiou-se no submundo das drogas, e para consegui-las, adentrou em outro mundo, o do crime.

O grande dilema da família do século XXI, provavelmente, não difere muito daqueles que permearam famílias de outras épocas. O problema é justamente a ponte, ou a relação de conflito entre a tradição e a modernidade. Quais valores seguir? Aqueles que trazemos da herança familiar, da cultura de nossos pais e avós, ou os valores apresentados pela modernidade? Todas essas incertezas estão alicerçadas no nível de imaturidade ou maturidade dos espíritos que compõem essa geração atualmente reencarnada na Terra.

Até o século XIX, a cultura ocidental estava centrada na produção e, portanto, na valorização do trabalho como condição de dignidade e felicidade humana. Atualmente essa lógica é outra, ou seja, não mais centrada na produção, mas no consumo. O marketing e a propaganda, a serviço da produção, passaram a criar representações sobre a realidade, projetando um mundo onde só quem consome esse e aquele produto é feliz. É claro que a propaganda elegeu seu público alvo: o adolescente. Os motivos são vários. O adolescente já goza de mais liberdade de escolha do que a criança, pois está formando uma identidade pessoal muito calcada na “identidade do grupo”, não está comprometido com os compromissos da vida adulta, apesar de influenciar no orçamento doméstico, etc.

O consumo passou a ser o carro-chefe de uma cultura materialista, com um impacto enorme sobre a vida familiar. O consumo vem associado ao prazer, ao sucesso, a liberdade, ou seja, a elementos do imaginário humano que vão determinar novos comportamentos. Essa lógica da vida moderna fez com que a noção de consumo não ficasse somente restrita a poder comprar coisas materiais, enquanto objeto de desejos, mas transferiu essa relação de consumo para as relações afetivas. O jovem passou a “ficar”, a ter um relacionamento afetivo rápido, do momento, assim como o sexo pode ser comprado e vendido, cada vez de forma mais natural, basta abrir-se uma página de classificados de qualquer jornal.

Na ausência de valores sólidos, muitas famílias revivem o dilema de Alice, não sabem que caminho tomar. Muitos pais, e não somente seus filhos, aderem aos apelos da cultura contemporânea do: “consuma, viva com intenso prazer, ultrapasse seus limites, seja vitorioso…”.

A cultura atual contribuiu para liberar, ainda mais, os conteúdos egoísticos edificados nas estruturas mais profundas da alma humana. Jesus, o ser mais notável que Deus mandou a Terra para nos servir de modelo e guia[viii], propôs outros referenciais para o verdadeiro êxito espiritual. No conjunto de seus ensinos está claro a necessidade do sujeito embrenhar-se na sua subjetividade, fazendo o caminho contrário, ou seja, para dentro de si mesmo. Não defendeu uma alienação da vida, mas o “estar no mundo, sem ser do mundo.”

A família é um compartilhar de subjetividades (temperamentos, tendências, sentimentos, emoções, vontades, etc.) que compõem a realidade espiritual de seus membros. No geral, estamos na Terra para um contínuo progresso, desenvolvendo e aperfeiçoando nossa essência espiritual. Vivenciando uma experiência familiar, estamos em contato com sentimentos diferenciados que se misturam se entrelaçam e se chocam. Conviver é assim mesmo! Desafia nossa capacidade interior de responder positivamente aos reveses e intempéries do dia-a-dia. O dilema familiar, no entanto, faz parte de um dilema maior, o da própria evolução moral das criaturas, comprometidas com seu passado de méritos e deméritos, mas com um presente permeado de novas esperanças e possibilidades, conforme cada um desenvolva sua capacidade criativa e seus sentimentos mais nobres.

Retomando o dilema de Alice surge então o questionamento: A onde cada família irá chegar? Talvez em resposta a essa pergunta possamos fazer, conforme o Evangelho Segundo o Espiritismo, em seu capítulo 14, item 9, uma outra: Qual será o seu procedimento na família? E os próprios benfeitores nos respondem: “Dependerá da sua maior ou menor persistência nas boas resoluções.”

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