Publicado em 27 de abril, 2021 | por Centro Paz e Amor
0A Repressão ao Espiritísmo
Por Elaine Maldonado
Você, sabia, amigo leitor, que o espiritismo já foi considerado crime no Brasil?
Por mais incrível que isso possa parecer hoje, é verdade.
O Código Penal, instituído em 11 de outubro de 1890, trazia, no Capítulo III, na seção “Dos crimes contra a saúde publica”, os artigos 156, 157 e 158, que foram um duro golpe contra os espíritas, então já numerosos e institucionalizados no Brasil. Vejamos o que diziam tais artigos:
Artigo 156 – Praticar a Medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentária ou a farmácia; praticar a Homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos:
Penas – de prisão celular por um a seis meses e multa de 100$ a 500$000.
[…]
Artigo 157 – Praticar o Espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública:
Penas – de prisão celular por um a seis meses e multa de 100$ a 500$000.
[…]
Artigo 158 – Ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo e sob qualquer forma preparada, substância de qualquer dos reinos da natureza, fazendo ou exercendo assim o ofício do denominado curandeiro:
Penas – de prisão celular de um a seis meses e multa de 100$ a 500$000.
[…]
De acordo com o novo Código, o espiritismo passa a ser crime e, por essa razão, a reação da FEB não tardou. Um mês após o novo Código Penal entrar em vigor, O Reformador publica um artigo, endereçado ao Ministro da Justiça, em que contesta vivamente os artigos citados acima, especialmente o Art. 157, que cita explicitamente o espiritismo.
É importante ressaltar que o principal alvo eram os médiuns receitistas, que atendiam a população carente e, sob orientação dos espíritos superiores, prescreviam receitas, a maioria delas de medicamentos homeopáticos. O próprio Dr. Bezerra de Menezes foi curado de uma persistente dispepsia após uma consulta com João Gonçalves do Nascimento, médium receitista não habilitado em medicina alopática. Esses médiuns serão os mais perseguidos com base no novo Código.
Voltando à O Reformador, começa o referido artigo dizendo que, se até então a FEB havia se mantido distante das leis, era por julgar que elas eram de competência dos políticos, mas que, diante do cerceamento da liberdade dos espíritas de praticarem suas atividades, não poderiam calar-se. Comentando o Art. 157, que compara o espiritismo à magia e outras formas de superstição, diz o artigo:
O Espiritismo, Sr. Ministro, é a mais complexa negação de todas as superstições: ele as combate como a mais poderosa causa do atraso do espírito humano, ele afirma que só se deve acreditar naquilo que a observação, iluminada pelos processos científicos modernos, pode verificar como aquisição certa para o patrimônio dos conhecimentos.[1]
No mesmo número de O Reformador encontramos uma nota falando sobre a convocação extraordinária feita pelo Centro Espírita do Brasil, sediado na FEB, então sob a presidência do Dr. Dias da Cruz, com a finalidade de resolver quais providências deveriam ser tomadas acerca da inclusão do espiritismo como crime contra a saúde pública pelo novo Código Penal.
Durante esta reunião, que aconteceu em 20 de outubro de 1890, ou seja, apenas, 09 dias após o Decreto 847 que institui o Código, ficou decidida a formação de uma comissão que ficaria incumbida de redigir uma representação a ser entregue aos poderes do Estado para a defesa do espiritismo. Essa representação foi redigida oficialmente por Bezerra de Menezes.
O Reformador publicou uma longa série de artigos contestando veementemente os artigos do código. E nessa tarefa ele teve a ajuda de Bezerra de Menezes.
O Dr. Bezerra de Menezes, que há alguns anos publicava artigos doutrinários sobre o espiritismo nas páginas do jornal O Paiz, passará a colaborar ativamente para que essa discussão sobre o novo Código seja levada a conhecimento público.
Bezerra de Menezes, sob o pseudônimo de Max, publicou em O Paiz, de 23 de outubro de 1887 a 24 de novembro de 1894 uma coluna intitulada “Espiritismo: Estudos Filosóficos”, que foi muito importante para a divulgação da doutrina.
Toda a sua publicação nessa coluna, e também as posteriores no Jornal do Brasil, e na Gazeta de Notícias entre 01 de dezembro de 1895 a 15 de outubro de 1897 foram compiladas em três volumes pela Fraternidade Assistencial Esperança ( FAE). No volume II desta obra é que encontramos os escritos referentes à proibição do espiritismo pelo novo Código. No primeiro destes artigos, sob o título de “A Condenação do Espiritismo”, Bezerra de Menezes questiona se os autores dos citados artigos conheceram o espiritismo antes de condená-lo, e termina em tom incisivo:
O Espiritismo tem de zombar dos “Césares” da República, como o Evangelho, de que é o complemento, zombou dos Césares do império universal.
Um dia, atendam bem, um dia, vós, como tantos outros, haveis de chorar lágrimas de sangue. Nós, os espíritas, temos dó da vossa presunção. [2]
No artigo seguinte, o tom se eleva ainda mais, a começar pelo título “Código Penal – Idéia Repugnante” e o Dr. Bezerra de Menezes critica o autor do Código, o conselheiro João Batista Pereira:
Terá o autor do código procedido tão arrogantemente, pela vaidade da competência, para julgar na matéria, ou foi por ignorância completa do que seja o Espiritismo, e de quais são os sábios de todos os tempos, que têm prestado seu nome a esta filosofia transcendente, a esta Ciência, que em menos de meio século, já possui elementos de avassalar todas as Razões e todas as Consciências?
A primeira hipótese é tão arriscada, que exporia ao ridículo o autor do código, se fosse admitida. [3]
No mesmo artigo, após citar o Congresso Internacional Espírita, que tinha acontecido no ano anterior em Paris, o Congresso Espírita de Barcelona, em 1888 e um em Cuba naquele mesmo ano de 1890, é feito um apelo ao governo:
Max não pode concluir estas ligeiras considerações sem pedir ao governo um estudo sério desse trabalho, que vai envergonhar nossa pátria, quando for conhecido pelas nações, que não mais aceitam as idéias dos tempos da Inquisição, e…[4]
Inconformados com a inclusão do espiritismo no novo Código Penal, os espíritas vão buscar de todas as formas possíveis a revisão do texto. A série de artigos de Bezerra de Menezes é bastante longa, e mostra claramente o quanto a comunidade espírita estava disposta a lutar pela validade de suas práticas.
Além da discussão pela imprensa e do folheto que foi distribuído a várias autoridades, um memorial em defesa do espiritismo foi redigido e enviado ao Marechal Deodoro da Fonseca. Não conseguiram a supressão do termo espiritismo do art. 157, mas obtiveram uma resposta do redator, na forma de três artigos , publicados no Jornal do Comércio em 23, 24 e 30 de dezembro de 1890. Eis um trecho deste texto:
Sabemos respeitar a liberdade de crenças […] Não discutimos espiritismo e menos censuramos aqueles que o abraçam como ciência especulativa, sem descerem às suas práticas experimentais ou clínicas. […] o que não se admite é que se use do espiritismo, como de qualquer outro meio, em proveito próprio, mas me prejuízo da saúde, da vida e, quiçá, da honra alheias. [5]
As questões envolvendo os espíritas e as autoridades policiais demoraram-se anos, durante os quais várias prisões foram efetuadas e processos instaurados, a grande maioria deles com a absolvição dos réus, mas não há como negar que uma situação desse tipo abale em muito o ânimo dos envolvidos. Além do Código, havia ainda a questão com a Igreja Católica, e isso, aliado à perseguição policial e aos ataques dos materialistas e dos médicos alopatas, tornaram os últimos anos do século XIX bastante difíceis para os membros do movimento espírita.
Os espíritas, porém, não obstante o abalo sofrido e a dificuldade enfrentada durante os anos finais do século XIX, jamais desistiram de tentar provar a legitimidade de sua crença e seu direito à liberdade de culto. Seus argumentos ganham um reforço quando da promulgação da Constituição de 1891 que em seu art. 72, parágrafo 3° garantia a liberdade de culto no Brasil. Este artigo foi bastante utilizado em defesa do espiritismo e dos espíritas, sendo constantemente citado nos processos instaurados.
Somente no ano de 1942, com a promulgação do Novo Código Penal é que haverá a modificação do artigo 157, com a retirada do termo espiritismo.
Felizmente, nossos companheiros do início da jornada do espiritismo no Brasil foram perseverantes e não se deixaram abater. Através do estudo, do trabalho sério e da união de forças os obstáculos foram superados e a doutrina foi conquistando respeito e credibilidade.
[1] O Reformador. 01 de novembro de 1890, p.01.
[2] MENEZES, Adolfo Bezerra de. Espiritismo: estudos filosóficos. São Paulo: Edições FAE, 2001, vol.II, p.218.
[3] Idem, ibidem, p.221.
[4]Idem, ibidem, p. 222.
[5] GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história de condenação e legitimação do espiritismo. Rio de janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p.85.