Autoconhecimento e Evolução Espiritual
Paulo César Fernandes
Analisando a pergunta 919 de O Livro dos Espíritos, na qual Santo Agostinho nos ensina a forma mais eficaz para alcançarmos um estado espiritual mais harmonizado mediante a reforma dos sentimentos, constatamos que este sábio Espírito, o qual é um dos mais refinados e importantes filósofos de toda a história, remete-nos ao já consagrado princípio filosófico inscrito no umbral do Templo de Delphos, a saber, o gnouthi seauton: Homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo.
Allan Kardec reconheceu de imediato a eficiência desta máxima da filosofia antiga para a elevação do Ser e a consequente felicidade que ela proporciona ao Homem no mundo, a qual fora apresentada originariamente nos Vedantas, livros sagrados do Hinduísmo, adotada por Pitágoras e popularizada por Sócrates. No entanto, como homem da práxis e, portanto, que visava obter orientações eficientes para a transformação dos hábitos cotidianos e a evolução moral nas relações humanas, Kardec demanda do nobre filósofo uma receita pragmática, simples, e a mais eficiente para que o Espírito reencarnado no mundo evolua e resista à influência do mal.
A pergunta de Allan Kardec já patenteia que a ignorância da maioria dos Homens em relação à sua origem e destinação divinas é a principal causa do mal que ainda provoca tanto sofrimento humano. Portanto, atendendo à solicitação do organizador dos trabalhos dos Espíritos, Santo Agostinho apresenta a fórmula prática para o autoconhecimento, num formato simples e, no entanto, da mais elevada Ética, possível de desenvolvimento por qualquer pessoa já imbuída de boa vontade.
Neste sentido, ele recomenda aquela que era a sua prática diária para o autoconhecimento e a consequente evolução espiritual, a qual foi exposta de modo magistral na resposta à pergunta 919 de O Livro dos Espíritos: “Fazei o que eu fazia, quando vivi na Terra: ao fim do dia, interrogava minha consciência, passava revista ao que fizera e perguntava a mim mesmo se não faltara a algum dever, se ninguém tivera motivo para de mim se queixar. Foi assim que cheguei a me conhecer e a ver o que em mim precisava de reforma. Aquele que, todas as noites, evocasse todas as ações que praticara durante o dia e inquirisse de si mesmo o bem ou o mal que houvera feito, rogando a Deus e ao seu anjo da guarda que o esclarecessem, grande força adquiriria para se aperfeiçoar, porque, crede-me, Deus o assistiria.”
Esta é, sem dúvidas, a resposta mais conhecida de toda a obra de Kardec, a mais frequente e prontamente repetida nas atividades de estudos e exposições doutrinárias Espíritas, e, não obstante, é, igualmente, a mais incompreendida em toda a sua elevação e significado. O autoconhecimento é, indubitavelmente, a chave para o progresso do Ser, do Espírito criado por Deus e dotado de uma força denominada Vontade, a qual o impulsiona desde os primeiros estágios evolutivos até à plena realização da liberdade, por via da reencarnação. Entretanto, muito nos enganamos se pensamos ser de fácil realização este nobre Dever de cada um e de todo Espírito.
A importância daquela máxima de Delphos é tal, que Immanuel Kant, em suas obras de filosofia moral, conclui ser oconhecimento de si o primeiro dever de todo ente racional, pois é o único caminho para que o Ser alcance autonomia plena da vontade, ou seja, a realização da liberdade, mesmo se encontrando ainda no mundo. Segundo Kant, o gnouthi seauton nos conduz a um despertar da consciência, que realizará em nós o sublime conhecimento da nossa condição como Seres noumenon, ou seja, Espíritos. Entretanto, segundo o filósofo, neste percurso, passaremos, antes, pelo inferno interior.
Quando o Espírito Santo Agostinho recomenda interrogarmos a consciência no cotidiano existencial, esta não é uma tarefa de fácil realização, pois, como Espíritos encarnados, como Jesus já denunciava, estamos submetidos à carne, que é fraca, ou seja, cujos sentidos físicos nos impõem necessidades que, se não controladas, determinarão nossas relações familiares e sociais e, sobretudo, nossas relações conosco mesmos, ou, como diria Kant, nosso inferno ou céu íntimo.
Outrossim, porque essa tarefa de autoinvestigação exige o domínio de leis e conceitos relativos à vida do Espírito, assim como e, principalmente, um conhecimento prévio de que, se é um Espírito reencarnado, ela já denota sua dificuldade. A enorme maioria das pessoas no mundo, inclusive os que já estudam Kardec, não têm essa certeza. Mesmo o filósofo de Tarso, lamentava não viver nem andar como Espírito, embora soubesse ser um Espírito! Esta inquietação do apóstolo Paulo deveria também nos atingir como estudantes do Espiritismo, e nos levar diariamente à pergunta: Se, sei que sou um Espírito reencarnado, por que não vivo, por que não ando como um Espírito reencarnado?
É para nos conduzir a uma tal postura existencial que Kardec elaborou a pergunta 919, ou seja, para que, imbuídos do mais absoluto conhecimento espiritual já trazido à Terra, conseguíssemos realizar o nobre dever do autoconhecimento, com as suas mais profícuas consequências para a elevação do Ser. A nossa dificuldade, entretanto, é exatamente essa, qual seja, não temos ainda a certeza de sermos Espíritos em processo evolutivo por via da reencarnação, e a forma como encaramos os nossos dramas existenciais denunciam esta nossa carência pelo lastimável estado atual das relações humanas.
Aristóteles, o filósofo grego contemporâneo de Sócrates, inaugurando a epistemologia, ou seja, a ciência do conhecimento, deduziu que, para que tenhamos o domínio integral sobre um objeto, devemos responder a três perguntas fundamentais sobre ele, quais sejam: se é? o que é? como é? e, finalmente, por que é? A maioria dos espíritas já é capaz de responder às três primeiras perguntas sobre si mesmo, e, portanto: que somos, pois, como deduziu René Descartes, pensamos e o pensamento é um atributo essencial do Espírito. O que somos? Espíritos. Como nos tornamos Espíritos? Evoluímos em processo reencarnatório a partir da Criação da Inteligência por Deus. No entanto, a última, e ainda mais fundamental questão, continua sem resposta para a maioria de nós: Por que somos da forma que somos e não de outra, ou seja, por que temos o caráter que ainda ostentamos?
É exatamente no sentido de respondermos à essa última pergunta em relação a nós mesmos que Allan Kardec elaborou a pergunta 919 de O Livro dos Espíritos. Sendo o autoconhecimento a chave para o domínio do Ser, portanto, para o conhecimento de si mesmo e do universo, como já anunciavam os textos védicos e a filosofia clássica grega, não é por outro caminho que realizaremos nossa potencialidade de autodivinização. Quando Jesus nos assevera que “Não vem o Reino de Deus com formas exteriores”, não é outro o objetivo do Mestre, senão o de nos remeter para o sagrado local onde poderemos nos encontrar com a divindade: o próprio íntimo de cada Criatura.
Neste sentido, após nos revelar, naquela questão básica sobre o autoconhecimento, no livro primeiro do Espiritismo, Allan Kardec, em O Evangelho Segundo o Espiritismo continua a nos encaminhar para essa realização fundamental de todo o Ser. Assim, ele nos mostra, no Capítulo V desta obra, no item 7, que: “Aquele que se elevar, pelo pensamento, de maneira a apreender toda uma série de existências, verá que a cada um é atribuída a parte que lhe compete, sem prejuízo da que lhe tocará no mundo dos Espíritos, e verá que a justiça de Deus nunca se interrompe.”
Esta é ainda a nossa maior dificuldade na busca pelo autoconhecimento, pois não nos é fácil elevarmo-nos pelo pensamento a ponto de alcançarmos uma série de existências passadas, para que possamos responder, finalmente, por que ostentamos nosso caráter atual. Segundo Kant, nosso caráter é constituído por traços indeléveis de personalidade, ou seja, aquelas marcas profundas que não são tão facilmente apagadas do Espírito. Por isso, o autoconhecimento é fundamental à nossa realização como Ser no mundo, a qual não prescinde do respeito pela realização do outro, o que é Caridade.
Mas como se alcançar um tal estado de Espírito a ponto de conseguirmos a elevação suficiente para que sejamos capazes de apreender conhecimentos sobre fatos de nossas existências passadas? Não é por acaso que o mesmo Espírito Santo Agostinho nos dá essa resposta no Capítulo XXVII de O Evangelho Segundo o Espiritismo, quando no item 23, revela-nos A felicidade que a prece proporciona. Assim, completando a fórmula para o autoconhecimento, nessa dissertação o nobre Espírito nos mostra como podemos acessar nossos mais profundos arquivos de memória espiritual: orando!
Vinde, vós que desejais crer. Os Espíritos celestes acorrem a vos anunciar grandes coisas. Deus, meus filhos, abre os seus tesouros, para vos outorgar todos os benefícios. Homens incrédulos! Se soubésseis quão grande bem faz a fé ao coração e como induz a alma ao arrependimento e à prece! A prece! Ah! Como são tocantes as palavras que saem da boca daquele que ora! A prece é o orvalho divino que aplaca o calor excessivo das paixões. Filha primogênita da fé, ela nos encaminha para a senda que conduz a Deus. Para vós, já não há mistérios; eles se vos desvendam. Apóstolos do pensamento, é para vós a vida. Vossa alma se desprende da matéria e rola por esses mundos infinitos e etéreos, que os pobres humanos desconhecem.
Sabendo, pelo domínio completo dos ensinos trazidos por Allan Kardec, sermos Espíritos em evolução mediante processo reencarnatório para cumprimento da Lei de Amor, o recolhimento diário sob preces, ou seja, o processo de autoconhecimento, a meditação já praticada pelos filósofos indianos no yoga, e na contemplação da natureza pelos filósofos gregos, nos proporcionará um domínio integral sobre nossos sentimentos, e, consequentemente, de nossos pensamentos, palavras e ações.
Esta é a mesma prática diária recomendada por Santo Agostinho, que nos permitirá alcançar um estado mais elevado de consciência, um domínio sobre nós suficiente, para que, mesmo nos encontrando ainda no mundo, possamos resistir à força do mundo, adquirindo uma fortaleza moral que, finalmente, nos revelará nossa capacidade plena de autodivinização. Este é o conhecimento da Verdade que habita em nós e que nos mostrará nosso elevado valor como Criaturas, o qual nos permitirá realizar a bem-aventurança exaltada pelo Mestre e a justificar o seu testemunho a nosso respeito: sois deuses e realizareis tudo o que eu fiz!
(Artigo extraído do “Anuário Espírita 2017” – Ide Editora).