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Publicado em 20 de dezembro, 2016 | por Centro Paz e Amor

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Evangelizar é despertar

Herculano Pires

A didática nas aulas de Espiritismo deve promover o crescimento integral da criança; considerar o espírito imortal é fundamental a quem melhor despertar, senão às crianças?

Os Evangelhos de Jesus, que chegaram até nós através dos relatos escritos dos seus discípulos e da tradição apostólica, constituem uma síntese das conquistas espirituais da Humanidade em toda a sua evolução, até o momento histórico do advento do monoteísmo como uma realidade social. Mas a essa síntese temos de acrescentar a visão profética de Jesus que, a partir das conquistas já realizadas, abriu novas perspectivas para o futuro humano. Seus ensinos não se limitam a uma repetição do passado. Como em todos os processos históricos, culturais e espirituais, as novas gerações, reelaboram a experiência passada, segundo a tese pedagógica de John Dewey. Jesus procedeu a essa reelaboração num plano superior, o da consciência iluminada pela visão espiritual.

Se juntarmos à tese de Dewey a de Arnold Toynbee sobre as religiões e seu papel no processo histórico, vemos que as reelaborações coletivas, sempre dirigidas por um mestre ou líder – no caso um Buda, um messias, um cristo, palavras que se equivalem – se concretizam em novas mundividências, como a do Budismo em relação ao Bramanismo antigo, a de Confúcio em relação ao Taoísmo, a do Cristianismo em relação ao Judaísmo.

Essas mundividências (concepções gerais do mundo e da vida) englobam as conquistas válidas do passado e as visões proféticas do futuro. Ernest Cassirer, em seu ensaio sobre a tragédia da cultura, ou seja, o aspecto trágico do desenvolvimento cultural da Humanidade, lembra que as experiências do passado se concretizam ou se condensam nas obras de uma civilização e podem ser depois despertadas por civilizações futuras, como no caso do Renascimento, onde vemos a cultura greco-romana renascer de suas próprias cinzas, ao impacto da cultura nascente da Europa, nos fins da Idade Média.

A cultura humana – que abrange todas as áreas do Conhecimento e, portanto, também a religiosa – é um imenso esforço coletivo de gerações e épocas, de civilizações e culturas encadeadas e solidárias através do tempo. Sua transmissão se efetua pela educação, mas a educação não é um simples fio transmissor ou objeto passivo, e sim uma espécie de caldeirão em que fervem as idéias, semelhante ao caldeirão medieval de que falou Wilhelm Dilthey em O homem e o Mundo. É nesse caldeirão que temos de ser inevitavelmente mergulhados, desde que nascemos e até mesmo antes do nascimento, para sermos devidamente cozidos à moda do século.

Se formos deixados fora dele não recebemos os ingredientes da cultura e nem os estímulos necessários ao despertar das nossas forças latentes, na linha das experiências adquiridas. Sem o processo da educação, o ato de amor de Kerchensteiner e Hubert, não despertaremos para a nova orientação que devemos seguir na nova encarnação, na nova experiência existencial. Sem o impacto da educação a cultura do passado não renascerá em nós para o novo desenvolvimento.

Dessa maneira, negar às crianças o direito à educação cristã, através da evangelização, seria sonegar-lhes o quinhão que lhes cabe na herança cultural. As pesquisas sobre a educação primitiva, básicas para a compreensão de toda a problemática educacional, mostram de sobejo que mesmo nas tribos selvagens a iniciação nos costumes, nos rituais, nas crenças e nas tradições da nação, se processam com regularidade, dentro de uma sistemática apropriada. Porque o direito de escolha, de opção, no exercício do livre-arbítrio individual, pressupõe inevitavelmente o direito de aquisição dos elementos necessários ao julgamento. A educação não é um ato de imposição, de violação de consciência, mas um ato de doação.

O educador oferece ao educando os elementos de que ele necessita para integrar-se no meio cultural e poder experimentar por si mesmo os valores vigentes, rejeitando-os, aceitando-os ou reformulando-os mais tarde, quando amadurecer para isso. Já dizia o Eclesiastes: Deus fez tempo para tudo. E o povo repete: Tudo tem o seu tempo.

CONDIÇÕES DA CRIANÇA

As condições de aprendizado da criança variam numa escala progressiva, segundo o seu desenvolvimento psicossomático. Determinar uma idade limite em que essas fases se sucedem é temerário. Atualmente as escalas ontogenéticas são bastante flexíveis. No campo específico da psicogenética verifica-se uma continuidade (e não uma sucessão descontínua) entre a percepção e o desenvolvimento da representação. Por outro lado, o desenvolvimento da linguagem, como observa René Hubert (La Croissance Mentale) equivale ao desenvolvimento da inteligência. Vejamos a sua afirmação textual: Em particular, a linguagem humana é, certamente, o fator mais poderoso da passagem da inteligência prática à inteligência representativa. Tanto Piaget como Wallon concordam com isso e são citados por Hubert (I parte: A Infância, obra citada).

A inteligência infantil se manifesta progressivamente, passando da fase sensório-motora para a fase prática, desta para a representativa e desta para a abstrata. Mas está sempre atuante no desenvolvimento orgânico e psíquico. Enfrentando o problema na posição materialista podemos negar à criança a capacidade de compreensão de certos princípios abstratos, mas enfrentando-o numa posição espírita teremos de admitir as suas possibilidades latentes. A percepção intuitiva, subliminar, antecipa a compreensão racional e prepara o seu desabrochar no futuro. A contribuição atual da Parapsicologia nesse sentido abre novas perspectivas ao revelar maior dinamismo do inconsciente, tanto na criança quanto no adulto. As ciências de hoje se aproximam rapidamente das rejeitadas conclusões espíritas.

Mas, além disso, é preciso lembrar que a evangelização da infância não é nem pode ser feita em termos de pura abstração, o que seria um ilogismo. Daí o apelo muito justo e muito pedagógico, pois inegavelmente didático, às historietas figuradas. Trata-se de uma técnica audiovisual de inegável eficiência.

E seu objetivo não é a transmissão dos princípios doutrinário, mas o despertar da criança para a compreensão de realidades que ela já traz no inconsciente, na memória profunda que guarda as vivências do passado. A função da historieta é a mesma da maiêutica de Sócrates e lembra o acordar da reminiscência platônica na mente do espírito encarnado. Essa função, por sinal, corresponde precisamente ao objetivo real da educação, que não é transmitir ensinamentos mas predispor a mente a recebê-los através da instrução e a assimilá-los na formação cultural.

Por tudo isso a evangelização da criança não pode ser encarada como ato de imposição ou de violência. Nenhuma aula de evangelização espírita impõe dogmas de fé nem pretende realizar a internalização dos princípios espíritas, pois sua finalidade é o contrário: despertar na criança as suas forças interiores e fazê-las aflorar no plano da consciência. O que se pode é enriquecer essas aulas com as contribuições do Método Montessori, criando um ambiente estimulante e juntando às historietas outros elementos sensoriais, de acordo com as faixas etárias dos alunos.

Os trabalhos de Maria Montessori e a sua teoria educacional correspondem em grande parte às aspirações e aos objetivos da evangelização espírita das crianças. Não seria deixando a criança entregue a si mesma, a título de respeitar o seu livre-arbítrio, que a poderíamos conduzir à liberdade de consciência e à responsabilidade pessoal sustentadas pelo Espiritismo. O próprio conhecimento da psicologia infantil, particularmente acrescida da contribuição espírita – que nos oferece uma interpretação psicológica da infância muito mais profunda e real – exige que nos interessemos pela sua evangelização.

EDUCAÇÃO FAMILIAR

Mas não seria certo deixarmos esse problema para o âmbito familiar? Se O Livro dos Espíritos preceitua que é esse o dever dos pais, missão sagrada de que terão de dar contas, não parece claro que só a eles compete a tarefa? Esse preceito consta do item 385 do livro básico. Mas no item 383 encontramos o seguinte: Encarnando-se o espírito com o fim de se aperfeiçoar, é mais acessível, durante esse tempo (a infância) às impressões que recebe e que podem ajudá-lo no seu adiantamento, para o qual devem contribuir os que são encarregados da sua educação.

Querer, pois, restringir a educação aos pais seria negar a existência da vida social, do processo de relações em que os homens se completam uns aos outros pelo auxílio mútuo (item 766 e seguintes), negar a Lei de justiça, amor e caridade (item 873 e seguintes).

No item 685, tratando dos problemas sociais, Kardec, lembra a necessidade do desenvolvimento da educação e acentua: não da educação intelectual, mas da educação moral; mas não também da educação moral pelos livros, e sim daquela que consiste na arte de formar os caracteres daquela que transmite hábitos: porque a educação é o conjunto dos hábitos adquiridos.

Quando essa arte for conhecida, aplicada e praticada o homem chegará a um mundo de hábitos ordeiros e de previdência… – No mesmo trecho Kardec lamenta a massa de indivíduos que diariamente são lançados no meio da população sem princípios, sem freios e entregues aos seus próprios instintos…

Absurdo querer apegar-se a um trecho em que a responsabilidade dos pais é acentuada, como devia ser, para limitar a educação espírita à família. Maior ainda se torna esse absurdo quando sabemos que a educação familiar só teve predominância nas civilizações anteriores à nossa, ou seja, nas civilizações primitivas, agrárias e feudais.

A partir da revolução industrial, e particularmente na civilização tecnológica dos nossos dias, com o desenvolvimento e a complexidade crescente da vida social, a educação familiar ficou restrita à infância nas suas primeiras fases, e assim mesmo sempre secundada pela educação escolar. Por outro lado, a educação religiosa, nem mesmo nas religiões formalistas e tradicionais, nunca se restringiu à família, exigindo sempre, desde as épocas mais remotas, o complemento da escola da igreja.

Por fim, devemos assinalar que a preocupação dos cursos de evangelização da infância, no meio espírita, não é nem pode ser a da transmissão de princípios, mas apenas a de preparação do espírito infantil para o bom aproveitamento da sua atual encarnação.

A orientação moral não é uma preparação filosófica, mas um processo de integração das novas gerações em determinado sistema de vida, a fim de que elas possam beneficiar-se com as experiências e as conquistas das gerações anteriores, capacitando-se na prática para o exercício futuro da crítica e da reelaboração de experiências.

Não há desperdício nem perda de tempo, e muito menos incoerência no cumprimento desse dever social e moral pelos jovens espíritas e pelas instituições doutrinárias. Desperdício, perda de tempo e incoerência haveria se os responsáveis pela educação das crianças espíritas não cumprissem o seu dever nesse sentido.

Extraído da RIE,  de abril de 1971, ano XL VI, nº. 03, pg. 69 – 72

Nota: o autor é cientista e suas pesquisas têm repercussão internacional. Com vasta experiência, o autor descreve em seu livro a evolução histórica da parapsicologia.

Revista Internacional de Espiritismo  – Junho de 2003

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