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Publicado em 23 de outubro, 2023 | por Centro Paz e Amor

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Viver e Chorar

Clayton Levi

Muito já se falou sobre a tal “ditadura da felicidade”, mas ao passar por uma livraria nesse final de semana constatei que a coisa está mesmo ficando séria. É espantosa a quantidade de “receitas para ser feliz” que brotam da indústria editorial. São tantos os títulos desse gênero que ficar triste tornou-se quase um pecado. Será que ninguém mais tem direito a alguns momentos d…e fossa? Afinal, pior do que sofrer, é sofrer sem poder chorar. Não estou dizendo aqui que o sujeito tem de passar a vida choramingando pelos cantos, no papel de eterna vítima. Isso é doença. Mas uma choradinha de vez em quando, só pra desabafar, até que cai bem.

Às vezes também sinto necessidade de chorar. Na escola me chamavam de manteiga derretida. Quando fui reprovado na quinta-série, aos doze anos, senti que a vida tinha acabado para mim. Naquele tempo, repetir de ano era o pior que podia acontecer a um garoto da minha idade. Carregaria para sempre o estigma de repetente. E tudo só porque não conseguia decifrar aquela tal de análise sintática. Confundia objeto direto com objeto indireto, não sabia a diferença entre oração principal e oração subordinada, muito menos por que uma criança da minha idade era obrigada a aprender aquilo.

Geografia sim, fazia sentido. Serra do Mar, Mata Atlântica, a Amazônia. Via-me explorando florestas e escalando árvores, navegando por águas indomáveis e margeando encostas escarpadas. Onças ferozes, sempre umas oito ou vinte, desafiando minha bravura. Mas o que me fascinava mesmo eram os vulcões. Aquilo me acompanhava desde os seis anos, quando ouvi pela primeira vez alguém dizer fluxo piroclástico. Claro que não decifrei logo de início, mas a sonoridade das palavras não deixava dúvidas de que era algo importantíssimo. Passei uma semana dando um jeito de encaixar a palavra piroclástico em todo tipo de assunto. Só me dei conta de que estava exagerando quando a vizinha foi tirar satisfações com minha mãe por eu tê-la chamado de assombração piroclástica.

As aulas de gramática, porém, eram um balde de água fria em meus devaneios infantis. Tremia toda vez que a professora, tão bonita, entregava as provas corrigidas. Diante daquela folha de papel, repleta de cruzes vermelhas, sentia-me à beira do abismo. O pior de tudo era expor o fracasso aos outros. A professora exigia a prova de volta na aula seguinte devidamente assinada pelos pais. Então meu aproveitamento capenga perdia importância e o problema passava a ser a assinatura dos pais.

Acovardado, coberto de vergonha e medo, ficava dando voltas, atravessava o dia, varava a noite e só no último momento, antes de ir para a escola na manhã seguinte, é que dava a notícia. Aparecia na cozinha com cara de beato em dia de procissão. Minha mãe já conhecia aquela cara. Ela parava de fazer o café, pegava a prova de minhas mãos e dizia num suspiro: “Outra vez?” Com o coração em frangalhos só me restava chorar. Não o fazia na frente dela porque tinha vergonha, mas me trancava no banheiro e aliviava a alma sentado no bidê. Desabafar, então, era um santo remédio.

 

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