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Publicado em 9 de agosto, 2021 | por Centro Paz e Amor

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A loucura como resultado da crença?

Por Elaine Maldonado – Pedagoga

No artigo anterior mencionei como Machado de Assis foi um grande crítico da doutrina espírita. Continuaremos a tratar deste assunto.

Uma das acusações que se faziam à doutrina é a de que ela levava à loucura e Machado de Assis, observador da sociedade que era, não deixou de escrever sobre isso em seus contos e crônicas, sempre com a ironia que lhe é característica.

No Livro dos Espíritos, obra básica da doutrina espírita, a questão de número 392 diz o seguinte:

Por que perde o espírito encarnado a lembrança de seu passado?”

E a resposta:

Não pode o homem, nem deve, saber tudo. Deus assim o quis em sua sabedoria. Sem o véu que lhe oculta certas coisas, ficaria ofuscado, como quem, sem transição, saísse do escuro para o claro. Esquecido de seu passado, ele é mais senhor de si”.

O esquecimento das vidas passadas é um dos preceitos da doutrina espírita. O homem deve reencarnar sem se lembrar de quem foi para que possa expurgar na encarnação presente os erros que porventura tenha cometido em outras vidas, sem lembrar-se das lutas e provas pelas quais passou, pois, segundo a codificação de Allan Kardec, se lhe fosse dado lembrar-se de tudo, perderia o mérito pelas conquistas da nova vida.

Um dos personagens de Machado de Assis, José Maria não faz caso desse ensinamento e teima em nascer com a lembrança de sua vida passada. Esse é o ponto de partida do conto “A Segunda Vida”,   incluído no livro Histórias sem Data.

A história se passa na sala de Monsenhor Caldas, para quem José Maria narra seus infortúnios. O padre, logo de início reconhece nele um louco, e pede que a seu criado chame a polícia.

E José Maria vai narrando história:

Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de 1860, ás cinco horas e quarenta e três minutos de manhã. Tinha então sessenta e oito anos de idade. Minha alma voou pelo espaço, até perder a terra de vista […][1]

Curiosa mente, José Maria morre em 1860, a data mais usada para determinar a chegada do espiritismo no Brasil e quando se registram as primeiras reuniões, a maior parte delas secreta, apenas para iniciados.

Antes dessa data, os magnetizadores já haviam divulgado bastante seu trabalho e a notícia das mesas girantes já chegavam da Europa. Allan Kardec publicou O Livro dos Espíritos em 1857 e logo a notícia desse lançamento chegou ao Brasil.

Estudantes brasileiros e pessoas abastadas em viagem à Europa, ao que tudo indica, traziam a obra de Kardec em sua bagagem na volta e entre a elite começou a se divulgar a nova doutrina. Também nesse ano de 1860, como já dissemos no artigo anterior, Casimir Lieutaud, diretor do prestigiado Colégio Francês, publica “Les temps son arrivés”, verdadeira profissão de fé publicada em nossas terras, porém, escrita na língua pátria de seu autor.

Estes fatos servem para nos mostrar que no ano em que o fictício José Maria morria, o espiritismo dava seus primeiros passos no Brasil e Machado de Assis, atento que era a tudo o que acontecia ao seu redor, não deixou de incluir o assunto em seus textos.

No conto em questão, nosso amigo José Maria continua narrando sua incrível história. Ele morreu, subiu aos céus, ali encontra Jó, por meio de quem fica sabendo que havia completado mil encarnações, ou, como ele diz, um milheiro de almas, e como prêmio, deveria reencarnar novamente, podendo até mesmo escolher se quer nascer príncipe ou condutor de bonde, rico ou pobre.

Embora relutante no início, ele aceita renascer, mas faz uma exigência: quer nascer experiente. E explica por que:

Fui vítima da inexperiência, Monsenhor, tive uma velhice ruim, por essa razão. Então lembrou-me que sempre ouvira dizer a meu pai e outras pessoas mais velhas, quando viam algum rapaz: – “Quem me dera aquela idade, sabendo o que sei hoje!”Lembrou-me isto, e declarei que me era indiferente nascer mendigo ou potentado, com a condição de nascer experiente. Jó, que ali preside a província dos pacientes, disse-me que um tal desejo era disparate;mas eu teimei e venci.Renasci no dia cinco de janeiro de 1861. Não lhe digo nada da meninice, porque aí a experiência teve só uma forma instintiva. Mamava pouco, chorava o menos que podia para não apanhar pancada.[2]

E o conto continua, narrando a confusão que se tornou a vida de José Maria, tomado pelo medo advindo das lembranças da outra vida. Não chorava quando criança para não apanhar, não come em uma festa por que se lembra de duas indigestões que teve na outra vida, tem medo de se casar e ter filhos aleijados…

Por fim se casa, mas em tudo está presente o medo, as lembranças ruins da outra vida o atormentam. Diz ele ao Monsenhor Caldas que essa sua segunda vida é “assim uma mocidade expansiva e impetuosa, enfreada por uma experiência virtual e tradicional. Vivo como Eurico, atado ao próprio corpo.[3]

Sem saída, José Maria deixa-se dominar pelo medo, pelas lembranças da vida passada e acaba por transformar sua vida e a da esposa num tormento.

Monsenhor Caldas não deixa de admirar sua imaginação, mas percebe que José Maria, apesar da eloqüência, traz claros sinais de loucura e delírios.

Quanto mais comenta sua triste sina, mais se altera. Por fim, no auge do delírio, quando já estava para avançar em Monsenhor Caldas, ouve-se pelas escadas passos e sons de espadas. José Maria vai preso.

Este conto, não traz em nenhum momento a palavra “espiritismo”, mas traz elementos claramente espíritas: a reencarnação, o esquecimento do passado, o resgate das faltas cometidas em vidas passadas – e das quais José Maria tem tanto medo de enfrentar. Machado de Assis buscava mostrar a questão das várias vidas do seu ponto de vista, recheando tudo com a mais fina ironia. De que adiantava lembrar-se da vida passada, se essas lembranças tolhiam qualquer aventura na vida presente?

O espiritismo ensina que a alma não deve se lembrar de sua encarnação passada para os eu próprio bem, e Machado de Assis, embora ao que tudo indica quisesse criticar a doutrina, mostrando que seus adeptos podiam facilmente descambar para a loucura; acaba por, indiretamente, confirmar que a doutrina de Kardec está certa nesse ponto, pois, se José Maria enlouqueceu com as lembranças de vida passada que lhe atormentavam a existência presente, isto prova que é melhor que o homem não se lembre de nada.

Aqui temos um interessante paradoxo: apesar da crítica embutida na questão da loucura de José Maria, Machado de Assis termina por concordar com os ensinamentos de Kardec, indiretamente. Por isso, fica claro que mais que criticar, sua intenção era a de dialogar, questionar a nova doutrina.

 


[1] ASSIS, Machado de.  Histórias sem data. Rio de Janeiro: W.M. Jackson Editores, 1942, p.215.

[2] ASSIS, Machado de. Op. cit. p. 217.

[3] Idem, ibidem, p. 219.

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